Às margens do Rio Tapajós, onde barcaças de soja e minérios já rasgam redes de pesca e deixam peixes mortos para trás, vislumbramos o que pode se multiplicar com a Ferrogrão. A ferrovia de 933 quilômetros entre Sinop (MT) e Miritituba (PA) é vendida como uma solução logística, mas, na prática, significa mais desmatamento, invasões de terras e envenenamento de territórios e florestas.
Os defensores argumentam que o Ferrogrão reduziria as emissões em comparação com o transporte rodoviário. Mas a matemática não fecha: impactos cumulativos – incluindo desmatamento, monoculturas e pesticidas – mostram que não basta simplesmente comparar os tipos de combustível. Estudos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) indicam que os municípios afetados detêm 9.8 milhões de hectares de florestas e savanas intactas, sob risco de conversão em terras agrícolas, comprometendo o equilíbrio das bacias dos rios Xingu e Tapajós.
O povo Munduruku já sente esses impactos. Nas terras da Praia do Índio e da Praia do Mangue, em Itaituba (PA), os portos de soja contaminam as águas e restringem a pesca. Se a ferrovia avançar, o transporte de grãos pelo Tapajós poderá aumentar sete vezes, agravando esse cenário.
Nem mesmo a lógica econômica justifica este projeto. Pesquisas do Amazônia 2030 A iniciativa mostra que os retornos financeiros realistas são até sete vezes menores do que o projetado, o que significa mais subsídios pagos pelo público para beneficiar a Cargill, a Bunge e a Amaggi. Além disso, os mercados internacionais exigem rastreabilidade e desmatamento zero; produtos ligados à destruição podem ser bloqueados, prejudicando o próprio fluxo que o lobby do agronegócio alega querer facilitar.
A Ferrogrão é a espinha dorsal de um corredor que transforma a Amazônia em rota de exportação de commodities e condena o Brasil a um papel subserviente. Junto com isso, virão mais portos e a conversão de rios em hidrovias.
Em agosto, o governo incluiu os rios Madeira, Tocantins e Tapajós no Programa Nacional de Desestatização, permitindo que grandes empresas os transformem em hidrovias industriais. No Tocantins, planejam explodir a Cachoeira do Lourenção, zona de reprodução de peixes e espécies únicas. Tudo em flagrante violação da Convenção 169 da OIT, que garante consulta livre, prévia e informada. E, às vésperas da COP30 em Belém, esse retrocesso enfraquece a credibilidade do Brasil perante o mundo.
É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal julgará a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.553 (relativa ao traçado da Ferrogrão) no dia 1º de outubro. A decisão não se refere apenas a uma ferrovia, mas sim à defesa da Constituição e da capacidade do país de limitar a pressão do agronegócio.
A ciência e o conhecimento ancestral alertam que o desmatamento já está comprometendo os "rios voadores" que sustentam as chuvas no Centro-Sul, e que sem floresta em pé, nenhuma agricultura sobrevive. E com rios mortos – como veias abertas para os lucros do agronegócio – qualquer futuro e soberania serão esvaídos.
Mas existem alternativas. Com a regularização fundiária, a demarcação e a titulação de territórios, podemos garantir uma floresta viva, meios de subsistência e equilíbrio climático. Em vez de beneficiar empresas estrangeiras, precisamos fortalecer as economias locais, diversificar a produção e valorizar a sociobiodiversidade. A Ferrogrão não é uma solução. É um atalho para o colapso climático, agrícola, alimentar e econômico do Brasil.
Alessandra Korap Munduruku, líder indígena do Médio Tapajós, é presidente da Associação Indígena Pariri e ganhador do Prêmio Goldman.
Renata Utsunomiya, analista de políticas públicas sobre transporte na Amazônia do Grupo de Trabalho de Infraestrutura e Justiça Socioambiental, é doutor em ciências ambientais pela Universidade de São Paulo.





